terça-feira, 7 de setembro de 2010

Hoje ele faria 91 anos...

Multifacetado. Essa é a melhor palavra para descrever meu avô. Ele foi um marido folgado e machista, um pai durão e autoritário, um compadre bem-humorado e prestativo, um vizinho simpático e um avô sensacional. Era um homem metódico: sentava sempre no mesmo lugar, só comia em prato fundo, tinha uma rotina rígida e dependia dos serviços que minha vó incessantemente lhe prestava.
             
Nunca tive a impressão de que ele era muito carinhoso, nem com os netos, nem com os filhos. Mas talvez eu tenha pensado assim porque eu era neta número cinco. Quando eu nasci, ser avô não era novidade. Não tinha mais aquela excitação. Era o caminho da vida, algo que era para acontecer e do qual ele já era testemunha há algum tempo. O interessante, no entanto, é que ele nunca deixou sua criatividade e sua satisfação em nos ver de lado.
             
Eu ia muito a casa dele e era sempre a mesma coisa. Eu chegava e sabia que ou ele estaria sentado na garagem vendo o movimento da rua ou estaria na sala vendo TV. Era minha obrigação ir até ele e pedir a benção. Eu detestava esse hábito ultrapassado e sempre dizia a ele que um dia eu teria netos e que eles nunca teriam que me pedir a benção. Um beijo me bastaria. Ele enchia os pulmões e ria da minha cara, dizendo que era uma questão de educação e respeito.
             
Pior do que esse costume era ter que fazer favores para ele. Eu sempre fui muito preguiçosa e adepta à lei do menor esforço. Odiava fazer favores. Só que os que ele pedia não eram bem favores. Eram mais ordens. Não tínhamos escolha. Ele pedia para buscarmos um par de meias e calçar nos pés dele e terminar o serviço deixando seus chinelos perto do descanso de pés. Eu queria me matar quando ele queria que eu fizesse essas coisas. Eu tinha nojo! Ia reclamando até o quarto dele, de cara fechada e com muita má vontade. E ele ainda ficava reclamando por causa da demora. Eu gritava lá de longe que meus netos não iam ter que fazer isso por mim e que ele não me fazia favores. Ele retrucava que era por isso que ele era o avô e eu, a neta.
             
Porém, havia também coisas das quais eu gostava e que fazia com um sorriso enorme de satisfação no rosto. Fazia parte do nosso repertório de atividades ir até a pastelaria buscar uns pastéis para a hora lanche, ir até a banca comprar picolé de limão (não tinha escolha porque ele gostava desse) e ir até uma espécie de restaurante buscar frango assado. No caminho, meu avô ia me contando histórias de aventuras que ele viveu, de moças bonitas que ele conheceu, de coisas que ele viu. Os detalhes já não guardo mais na memória. O que ele falava não me importava muito. Eu nem sei se eu realmente podia acreditar... Para mim, o legal era sair com ele. Era rir da brincadeira mais boba que ele fazia quase todo dia:
            – Eu não sei falar “girafa”. Eu só sei falar “gifara”.
            – Aí, vó. Acabou de falar!
            – Falar o que? Girafa? Eu não! Eu só sei falar “gifara”.
             
Nossa! Como eu me divertia com esse diálogo! Acho que não teve uma vez que eu o encontrei que ele não falou isso para mim. Às vezes, ele trocava a palavra, mas minha preferida mesmo a “girafa”. Não tinha jeito.
          
Outra coisa que eu adorava no meu avô era sentar no colo dele e ouvir o som do seu relógio de bolso. Para mim, era algo impressionante. Não me lembro a primeira vez que fiz isso, mas me recordo perfeitamente da fila que eu e meus primos formávamos, na ordem em que nascemos, para ouvir aquele sonzinho mágico. A ansiedade era tanta que até brigávamos quando tínhamos a impressão que um tinha ouvido mais o relógio do que outro. Ironicamente, durante aqueles poucos segundos em que nossos ouvidos quase engoliam aquele mecanismo cansado pelo tempo parecia que o mundo tinha parado. Nada mais importava. Éramos só nós, o colo do vô, o tic-tac e o silêncio.
           
Eu não via defeitos nele. Nenhum. Eu gostava demais dele para isso. Só tinha uma estória que me fazia odiá-lo infinitamente. Quando minha mãe era pequena, ela ganhou uma bola. Era linda, colorida e muito bem cuidada. Um dia, meus tios resolveram que queriam brincar com ela, mas minha mãe não queria emprestar porque sabia que seu brinquedo querido receberia muitos chutes que o deixariam deformado. Ela tinha acabado de lavar a bola e não queria estragá-la. Meu tio mais novo, não concordando com a decisão da minha mãe, queria tomar a bola dela. Começaram a brigar. Meu avô ouviu a confusão e resolveu terminar com aquilo de maneira definitiva. Buscou uma faca, fez minha mãe segurar a bola e a cortou no meio. Esse episódio, que ouvi várias vezes da boca dos envolvidos, me causava verdadeiro horror. Eu achava injusto, estúpido. Não tinha motivo para tamanho exagero. E a verdade é que o tempo passou e fez desse dia mais uma história de família, mas eu nunca consegui perdoar meu avô por isso. Nunca!
             
Os anos foram passando e meu avô, envelhecendo. A vida foi cruel com ele. Fez do senhor da casa um homem que necessitava de cuidados constantes. Ele foi degradando, perdendo a memória, os movimentos das pernas, sua autoridade, sua majestade. O homem alto e imponente que era deu lugar a outro miúdo, magro, curvado. Durante dez longos e sofridos anos, vimos o patriarca da família sendo destruído pelo Alzheimer. Nós vimos nosso avô querido desvanecer, sem acompanhar nosso crescimento. Ele estava lá, mas não sabia mais quem éramos. Os netos deles eram crianças barulhentas que brincavam pela casa, não aqueles projetos de adultos que iam visitá-lo. 
             
A situação foi se agravando a cada dia. Sabíamos que não podíamos fazer nada. Ele estava nos escapando e, a nós, só cabia lamentar. Ele foi ficando muito fraco. Engasgava facilmente, pois o esôfago não tinha mais força. Seu corpo inteiro precisava de um descanso. Minha mãe internou-o em um bom hospital, onde ele ficou quinze dias. Não tive coragem de visitá-lo. Não queria ver o avô que tanto amei ligado a aparelhos, cheio de tubos e fios por todo lado. Aquele já não era mais ele.
             
A família toda sabia que o tempo dele estava se esgotando, mas ninguém se prepara para perder alguém que ama.     Dia 3 de março de 2004, dias antes de começar meu primeiro semestre na UnB, o telefone da minha casa tocou. Era de madrugada. Eu já sabia o que era. Depois de tanto tempo, ele finalmente tinha se rendido. Era mesmo a hora dele.
             
Minha mãe saiu correndo para buscar um terno para ele. Muitas providências tinham que ser tomadas: enterro, velório, todas as pessoas tinham que ser avisadas. Eu só chorei. Mais nada. Nunca tinha ido a um enterro ou visto um morto tão de perto. Tive medo de chegar perto do caixão, mas quando criei coragem, fiquei feliz de ver que ele tinha um ar sereno no rosto. Não tinha mais a aparência que a doença tinha lhe dado. Parecia meu avô da minha infância, aquele que brincava comigo.
             
Na hora de levarmos o caixão até a cova, o tempo não ajudou. Uma tempestade caiu. Era como se até o dia se entristecesse com a perda dele. Ele foi enterrado na ala dos pioneiros, embaixo de dois pés de manga. Tudo como ele queria. Foi angustiante ver aquele caixão fechado descer dentro daquele buraco, a terra encharcada sendo jogada por cima, as flores fechando o ritual. Aquele era mesmo o fim. Agora, iríamos ter que aprender a viver com ele só nas mais deliciosas memórias de criança.

2 comentários:

Shimabuko disse...

This text kinda reminded me of my own grandfather... From time to time I still find myself reminding of him trying to teach me japanese in his own patientless way of teaching...

Lara disse...

Ahhhhh, Guilherme!
Tnx for your kind words!
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